TELÚRICA VERTIGEM
Mergulho, subo ao fundo da loucura,
delta negro de lábios abrasados,
onde perco os meus olhos alongados
sobre as ondas felinas de água pura:
desgrenhamos a pele e a espessura
das águas com os dedos demorados:
o frémito dos corpos adunados
transborda de alegria, transfigura:
ofegantes, à sombra das estrelas,
os poros inebriam, sentinelas
do sangue amotinado, no quentume:
telúrica vertigem desvairada:
expande-se, extasia e cresce e brada
à beira de um vulcão de lava e lume
Domingos da Mota—Gaia
In: “Bolsa de Valores”, Temas Originais, 2010
A CRUZ E A ROSA
“O homem é um actor de Deus no palco do Universo”, Jacob Levy Moreno
Se todos forem rudes, e a Rosa, em castigo,
Não tiver um Amigo, não beijar a benesse,
Ergue os olhos ao Pai, que o Paulo é contigo,
Ergue os olhos à missa, e lá será a messe.
E quando, ó Rosa minha, tu quando sentires
Que a noite é solitária, e o lábaro, um lamento,
Ergue os olhos ao Ceu, ergue os olhos à Íris,
E firme ficarei, ficarei no firmamento.
Paulo Brito e Abreu—Lisboa
POEMA DE NATAL
Se
bastassem
poemas de paz
para explicar o Natal
àqueles a quem tanto faz
àqueles a que só fazem mal
convocam-se os poetas para
escreverem no espaço até cansar as
canetas, até fechar um abraço à volta de toda
a Terra, à volta do Universo acabando
assim a guerra na rima
de um
simples
verso
Maria de Melo—Lisboa
UTOPIA
um passo e depois outro
sempre no lado de lá
é onde a margem começa
e eu corro pela planície
é onde a história começa
e eu canto danço e rio
nos braços do meu silêncio
cheio de cor e espavento
um passo e outro à frente
sempre no lado de lá
é onde a lua me encontra
e o sol me reconforta
é onde a voz se confunde
com o ar que seu respiro
é o todo assombrado
de mim a cada segundo
se quiserem aí estou
ou se não deixei-me só
sempre no lado de lá
sem o frio da cidade
eu nunca estarei só
onde canta a cotovia
e o sonho me assiste
ao romper de cada dia
Vaza Pinheiro—Lisboa
MAR - I
Tu tens azul na cor e são pedaços
De luz em ti as asas das gaivotas
E são bandeiras soltas nos espaços
Os trémulos voares das velas soltas…
Se me contares então perdidas rotas
Em vãos caminhos feitos, sonhos lassos
Se eu souber enfim porque derrotas
São feitos e desfeitos teus abraços…
Então - talvez então - eu saiba o jeito
Das águas que me levam como um leito
No meu destino igual ao teu, de mar…
...Espelho de asa azul, voo perfeito
Ou barco espedaçado em mar desfeito
De esta maré-sal de não baixar!...
Maria Virgínia Monteiro - Gaia
o tempo que de poeiras forma estrelas
é o mesmo que as faz explodir muitos milénios após
porque só o tempo
não importa a grandeza por que se deixe medir
tem o privilégio da eternidade
Joaquim Murale - Lisboa
DENSIDADES
papá
que foi que ele disse?
liberdade?
falou contra a família?
disse nomes feios?
ou foi contra o governo do lacerda?
temos de voltar
a ser fichados?
e eu que pensava
que era coisa certa:
que o lacerda caísse da cadeira
como caíu
quem tu muito bem sabes.
mas não
papá!
foi como me ensinaste:
as densidades
elas lá se entendem:
flutua bem melhor
o que é mais leve
sobre a mais limpa água
vêm à tona
os dejectos as rolhas
e… a erva.
e assim aconteceu
com os rapazes
do popular
governo
do lacerda
antónio vera - lisboa
FIM DE TARDE
Canta o verde plátano mil canções
ondulando suave ao fim da tarde;
o sol vai-se esvaindo em comoções
acenando mansinho com saudade
Vão regressando os pássaros ao ninho,
já grilos ensaiam a sua canção.
O rebanho recolhe ao seu cantinho
obedecendo ao mando do guardião
Ó fim de tarde tão amena e doce…
se o homem como a natureza fosse,
o Mundo quiçá seria mais puro
Serenavam revoltas e o Amor
despertava a manhã, doce licor
adoçando nos lábios o futuro…
Ana Briz - Lisboa
Tempo de desterro
De esperança transtornada
Olho azul abandonado
Língua e fogo castelhano
Occido ocidente
Medra o joio sem dissidente.
Joaquim Paulo Silva - Leça da Palmeira
RIOS PERDIDOS
De Salomé diria a seda, a pele, o fogo
sob os véus,
porque as jóias dos seus olhos ainda brilham,
como os rios perdidos que João Baptista
desdenhara, como cantatas profanas,
antes que flor obscura dos seus olhos
estremecesse e.
tal como Fedra enlouquecida, Salomé
chorasse a sede, a seda,
no seu triunfo amargo (os ciprestes ardendo),
- um lírio sobre os lábios,
o céu dourado
morrendo nos dedos.
Maria do Sameiro Barroso - Lisboa
turva corre a água,
em leito forte.
caudal de mágoa
e um rio de morte.
é água cristal,
leito d’alma: vazio.
sereno vai o caudal,
na calma do rio.
eduardo roseira - gaia