Sem mote...

O ROSTO DO MEU RIO DOURO

 

Fixo o olhar sobre o rio iluminado pelas luzes da noite, fascinada com os calmos reflexos, que se movem numa suave ondulação, de um estender de águas a abraçar o cais deserto.

Quero parar o tempo.

Quero-o parar, sem o quotidiano rodopio freneticamente pesado, qual açoite desferido de olhos vendados em todas as direcções, como se a vida, seja para ser vivida num jogo de cabra cega.

Um pouco mais além, as pontes em meia lua, sem o frenesim do dia ou a febre do principio da noite. Unem-se ao abraço do rio, o brilho das estrelas, a luz do luar e o meu pensamento.

Aos olhos da noite, a corrente deste belo espelho natural, sussurra a contagem das horas como um relógio sem tempo, num sereno desafio à minha incapacidade de o prender.

Não consigo parar o tempo. Nem o pensamento. Em fugazes hesitações, cruza o limiar da realidade ao limiar da imaginação, arrastando consigo o frenético quotidiano do novo dia.

Este é o rosto do meu Rio de espelhos Douro, numa noite calma de luar, onde me dispo e me procuro.

 

                                                                                              Teresa Gonçalves - Maia

QUERER

Entre dois sorvos de café,
o instante que estava à espera,
ali ao pé,
de algo incandescente,
ficou-se por um tímido sorriso
e pensou que era melhor
ter juízo,
e deixar as tentações
amarradas a estrofes de poesia!
Mas o querer engenhoso
entrou pelo peito dentro
e fez finca pé,
deitou-se no meu sono
e fez-me sonhar contigo!

                                                                                              Maria Olinda Sol – Porto

                                                                                  In:poesianagaleria.blogspot.com

 

RENDO-ME A TI

 

Porque arrasto e curvo e não me queixo?

A esta luz, a estas asas, enfim…

Se tanto homem me quer e os deixo;

És troar de canhão dentro de mim…

 

Se a tanto elogio, a tanto galanteio,

tanto chamar inglesa e bela já ouvi;

Ó deusa roliça e de farto seio…

Tu que nada chamas rendo-me a ti.

 

Sobes em febris desejos pelo meu corpo…

Que deixas prostrado em estado quase morto

este agora teu, meu pobre coração…

 

Ó luz do meu ego em que me aqueço,

satisfaz este pedido que eu te peço:

Rasga-me as carnes… Deixa-as estras no chão…

 

                                                                                  Fernanda Garcias – Vila do Conde

                                                                                  In: poesianagaleria.blogspot.com

 

LIBERDADE CORRUPTA

 

Dou-me ao riso das marionetas

e às carcaças das tartarugas

sem medo da chuva obliqua

que permeia o meu corpo solitário

 

Deixo a porta aberta, a algazarra

das crianças que brincam na rua

humaniza-me a esperança de outras

que morrem de pistola na mão,

e o pião roda, roda, roda…

o fio queima o olhar

das que fazem tapetes

sem sol, sem noite, sem hora.

 

Não me acordes amanhã

e se por acaso eu acordar

mente-me, diz que O’Neill

ainda está vivo.

 

                                                                                  Conceição Bernardino - Gaia

 

CRÓNICA POLICIAL


quarenta minutos antes do casamento
a noiva colocou ponto final à vida
trancada no banheiro do apartamento
misturou chá de cidreira com formicida
pôs seu vestido branco também grinalda e véu
enquanto escutava o bolero, de ravel

mas não deixou bilhete a explicar seu gesto
a xícara vazia a lata de veneno
em cujo conteúdo só ficara um resto
não havia palidez no rosto moreno
e jazia em paz sobre o frio azulejo
com a boca vermelha a implorar um beijo

                                                                                  Júlio Saraiva, São Paulo, Brasil